Por que o luxo contemporâneo está muito mais ligado a vivências do que a ostentação?
O QUE DEU LIGA:
O novo luxo ganhando cada vez mais espaço;
Conceito de luxo mais ligado a experiências não tangíveis, aquilo que nem sempre o dinheiro pode comprar;
Fim da ostentação? Não só: todos os tipos de luxo devem conviver cada vez mais juntos na sociedade;
O valor da experiência única, mas que todo mundo pode ter;
O tempo como maior valor nas nossas vidas sempre atarefadas: resgate das relações (mais tempo para estar com filhos, por exemplo), a importância do ócio e os ganhos do planejamento de horários;
Personificação: empresas tratando clientes como pessoas muito importantes (VIP) – e cada vez mais com o big data, que nos permite ter informações e dados muito íntimos dos clientes.
Sai a exclusividade, entra a autenticidade.
Pode reparar, o conceito de luxo está em rápida transformação. Se antes luxo era o hotel 5 estrelas, a joia exclusiva, o carro de produção limitada, hoje ele tem mais a ver com a personificação, ou como cada um vive uma experiência - única sim, mas nem por isso totalmente exclusiva, no sentido de excluir. O luxo na pós-modernidade tem mais a ver com a vivência do que com a posse, com a democratização do que com a ostentação. Em tempos em que os recursos mais escassos da nossa vida são aqueles que não podemos comprar (tempo, emoções, relações), ter (e mostrar que se tem!) é um valor, quem diria, cada vez mais desvalorizado atualmente. Algo que começamos a perceber quando passamos a reunir informações e dados para uma palestra sobre o tema que a LIGA foi convidada a desenvolver. Para falar de luxo contemporâneo, precisamos pensar em elementos que dão base ao pensamento pós-moderno, das transformações que a internet possibilitou até conceitos como a modernidade líquida e o meta-consumo (quando os padrões de consumo não podem mais ser definidos por segmentos demográficos “tradicionais” como idade, gênero, localização, renda, status social e outros, e se explicam por fatores que se combinam, se diferenciam e se juntam entre si). Quando levamos em conta todos esses elementos, fica claro que o conceito de exclusividade não é a única variável para determinar se algo é luxo ou não. O luxo acompanhou a fluidez do mundo e pode ser visto sob diversos pontos de vista. E nós achamos que isso vale uma reflexão. Nesse cenário, o novo luxo é sutil, discreto, quase invisível e pouco tangível. Luxo tende a ser mais se hospedar em um acampamento criado exclusivamente para uma temporada no meio do Jalapão do que alugar uma suíte superior no maior hotel de Dubai. Luxo tem muito mais a ver com sensações, com a nossa ligação com as emoções. Não com grandes somas de dinheiro ou com propriedade e posse. Algo que o mercado (de luxo!) já se deu conta...
“O luxo é agora para as massas e para as classes", disse François-Henri Pinault, então presidente do grupo PPR — das marcas Gucci, Stella McCartney, Alexander McQueen e Yves Saint Laurent.
Como o luxo se transformou...
...na alta Idade Média, surgem as classes sociais. O luxo torna-se atributo de posição social, podendo ser identificado também como marca de individualidade. É possível dizer que o luxo surgiu junto com as classes sociais, como uma forma de diferenciação entre elas – a busca por esse status de diferenciação... ...assim, uma nova forma significativa de luxo começa a emergir, aquela que tem origem no talento e no trabalho. Os burgueses prosperam com o comércio e equiparam suas fortunas às dos nobres. A burguesia, buscando reconhecimento e prestígio, imita a classe social superior, copiando a nobreza em tudo, inclusive nas vestimentas... ...algo que ficou ainda mais presente no Renascimento. Foi a partir daqui que o luxo assumiu uma significação mais próxima à realidade de hoje, referindo-se à aparência e aos excessos, que determinou a ostentação. Castelos suntuosos para a proteção dos reis foram construídos nessa época, a moda era guiada pelas vestimentas da corte, e as festas eram bastante sofisticadas... ... quando a passagem da sociedade de produção para a sociedade de consumo e o sentido do ato de consumir ganha outro patamar, já na sociedade contemporânea. Se as grandes ideologias, alicerces e instituições se tornaram instáveis, o consumo se tornou um elemento central na formação da identidade. Muito além da satisfação de necessidades, consumir passa a ter um peso primordial na construção da identidade. O ter passa a ser mais importante que o “ser”... ... principalmente no conceito de modernidade líquida, os indivíduos não possuem mais padrões de referência nem códigos sociais e culturais que lhes possibilitem, ao mesmo tempo, construir sua vida e se inserir nas condições de classe e cidadão.Os indivíduos não possuem mais lugares pré-estabelecidos no mundo onde poderiam se situar, mas devem lutar livremente por sua própria conta e risco para se inserir numa sociedade cada vez mais seletiva econômica e socialmente.
Inclusivo não é o oposto de exclusivo
Na gastronomia, por exemplo, o inclusivo virou palavra de ordem de grandes chefs, antes mais afeitos ao exclusivo: cozinhar para muitos é mais desejado hoje que cozinhar para muito poucos. A Casa do Porco, restaurante paulistano do chef Jefferson Rueda, no Centro de São Paulo, recebe mais de 20 mil pessoas por mês. Trata-se de uma proposta mais democrática e popular de alta gastronomia. O luxo está justamente na experiência proposta pelo chef: a comida é ótima, os ingredientes são de alta qualidade, o serviço é eficiente, o local é casualmente agradável e o preço da conta, afinal, é bastante acessível para pagar por tudo isso. O público variadíssimo – dos advogados endinheirados com escritórios vizinhos a jovens que nunca tinham pisado no pedaço, passando por personagens do dito ‘underground’ – é uma prova de que luxo pode, sim, ser para todos.
“O luxo mudou. E o conceito restaurante de alta gastronomia mudou com ele. Luxo é ir ao restaurante escolhido com uma roupa confortável ao invés de ter que botar um blazer para jantar (como exigem muitos dos restaurantes com 3 estrelas no Guia Michelin). Vale mais a ideia incrível, o ingrediente na melhor época, um espaço bacana. Quero ir num lugar para me divertir, muito mais isso do que comer com garfo de prata. Prefiro servir uma batata doce que acabou de ser colhida do que uma trufa branca de Alba que demorou mais de um mês para chegar às minhas mãos e que, por isso, perdeu todo o seu rico aroma” Felipe Bronze, chef de cozinha (de restaurantes como Pipo e Oro) e apresentador de TV
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DOIS EXEMPLOS de como o novo luxo já se modificou em outras esferas da nossa vida:
1. Nas relações de trabalho: pessoas que conseguem ter trabalhos flexíveis e serem donas de seu tempo. Talvez seja esse o maior luxo na nossa sociedade contemporânea, ao percebermos que as empresas pagam pelo nosso trabalho (nossa criatividade, nossa capacidade de gerar conhecimento e até lucro), mas não pelo nosso tempo. A hora que eu quero ou não fazer uma atividade tem que ser determinada por mim mesmo – o tempo é meu.
2. Nas relações de compras: a Farfetch, maior e-commerce de luxo do mundo, com 2.000 marcas em sua plataforma, acaba de criar a sua “loja do futuro”: ao entrar na loja, o cliente faz “Check-in” e seu histórico de compras aparece em uma tela. O aplicativo mostra as novidades, inclusive algumas peças que podem ser personalizadas de acordo com o gosto do cliente. Basta clicar para levar o produto na hora. Se não tiver no estoque, a empresa entrega depois na sua casa, em qualquer lugar do globo que ela esteja. Sem vendedores na sua cola, sem taça de Champagne de boas-vindas.
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NOSSA LINHA DE RACIOCÍNIO
O luxo sempre teve um apelo muito visual, afinal a aparência é a primeira ferramenta de distinção, principalmente em relação a classes sociais. O status e, consequentemente, a ostentação passaram a ser formas de expressão de identidade. Por isso, é comum pessoas de classes mais baixas quererem consumir os mesmos objetos das classes mais altas: iPhone virou um símbolo de status, uma forma imediata de ascender ao topo da cadeia. O consumo nivela as pessoas, e o luxo as diferencia. O luxo se tornou mais acessível, ainda que antes fosse visto como ostentação. Hoje, a ostentação se tornou um valor indesejado, mal visto por muitos e a ser evitado por outros. Surge um novo luxo, mais afeito às experiências e a uma busca por autenticidade, ainda que represente status, uma distinção, que imponha posição social ou galgue uma ideia de prestígio. A circulação de ideias promovida pela internet impacta no conceito de luxo como distinção. As comunidades virtuais estenderam-se, possibilitando a comunicação entre quem compartilha um mesmo estudo, hobby ou atividade. As minorias (sejam políticas, culturais, de raça ou sexo), estão mais interconectadas e protegidas do que antes. Afinal, podem se agrupar para fazer pressão e modificar atitudes, sejam da sociedade ou do governo. A inclusão se tornou um grande valor dos nossos tempos. Um valor que é o oposto de distinção, de exclusivismo. Se é difícil definir e decifrar quem é o novo “meta-consumidor”, pessoas de todas as idades e classes que constroem suas próprias identidades mais livremente do que nunca, é difícil definir o próprio consumo também – e consequentemente o novo luxo. Porque ele parte muito mais de vivências e experiências pessoais e autênticas do que de um comportamento “de manada”. Além da definição de alguns atributos que sempre estiveram ligados à ideia de luxo, como a distinção, o reconhecimento e até mesmo o prestígio social e profissional, novos valores passaram a ser incorporados ao conceito de luxo. Tempo e mobilidade, por exemplo, se tornaram os grandes ideias de luxo da atualidade.
NOSSA MORAL DA HISTÓRIA
Nesse sentido, as marcas de luxo precisam de conexão com esses novos valores contemporâneos para sobreviveram e até expandirem a ideia que sempre tiveram sobre ele: luxo não precisa ser para poucos, gerar acesso é democratizar o luxo, e escalar o acesso. A questão da diversificação em produtos relacionados a estilo de vida e várias faixas de preço são a chave para o futuro do luxo. O luxo tende a trazer uma ideia mais prática de vida: não ficar horas no trânsito, comer bem, resolver coisas chatas rapidamente pela internet, cultivar um estilo de vida humanizado, com espaço para relações afetivas, pequenas indulgências, flexibilidade e tempo disponível. É resgatar as coisas que nos permitem aproveitar melhor a vida, com a possibilidade de pegar o filho na escola, ter a hortinha em casa, chamar os amigos para um pic-nic no parque. Ter mais a ver com as sensações, enfim. Conseguir se expressar sem buscar a aprovação do outro e de estimar cada vez menos o status da ostentação que nos distancia do sentido de viver livre e plenamente. Claro que esse novo conceito de luxo, mais galgado na autenticidade do que na exclusividade, deve dominar todas as áreas da nossa vida e mudar radicalmente a forma como consumimos, ressignificando o próprio sentido das nossas atividades, da forma como consumimos serviços, da forma como fazemos compras. O maior luxo, então, seria tentarmos viver de uma forma mais humana e mais plena? Essa é uma boa reflexão para entendermos onde vamos focar nossos valores. E quanto eles vão de fato “valer” na nossa sociedade contemporânea.
DEU LIGA! é uma newsletter de tendências, reflexões e insights da equipe da LIGA PESQUISA, um estúdio de pesquisas qualitativas que realiza estudos para marcas de diversos segmentos. Como buscamos realizar nossas pesquisas com profundidade e relevância, não temos uma periodicidade determinada. A próxima newsletter só vai sair quando a gente tiver digerido e discutido muito o próximo assunto – que, aliás, já começamos a debater. Gostou do nosso conteúdo? Escreva pra gente! Para conversar, discutir, sugerir, criticar. Esperamos ouvir notícias suas!